
PENSAR HISTÓRIA E GEOGRAFIA
História e futuro, ou o sentido da história
Dias, A. (2016). Do saber histórico à educação histórica. Estudo realizado para a obtenção do Título de Especialista na área da Formação de Educadores de Infância e de Professores do 1.º e 2.º Ciclo – Ciências Sociais. Lisboa: Instituto Politécnico de Lisboa (pp. 21-29).
Sobre o ofício do historiador
Dias, A. (2016). Do saber histórico à educação histórica. Estudo realizado para a obtenção do Título de Especialista na área da Formação de Educadores de Infância e de Professores do 1.º e 2.º Ciclo – Ciências Sociais. Lisboa: Instituto Politécnico de Lisboa (pp. 60-64).
História e futuro, ou o sentido da história
A compreensão dos fundamentos do pensamento histórico contemporâneo e dos conceitos em que se alicerça o seu discurso passa por conhecer e analisar o modo como evoluíram as conceções da história no campo da sua filosofia, a partir do século XVIII. A época das Luzes, o desenvolvimento do pensamento científico e a Revolução Francesa fizeram emergir uma “filosofia da história” que, no essencial, procurava encontrar um sentido para a história (teleologia) e cuja expressão surge pela primeira vez num texto de Voltaire, Essai sur les Moeurs, de 1769 [1].
Não obstante as origens deste pensamento teleológico devam ser remetidas para Platão e o seu texto Phédon [2], ele encontra-se na base da historiografia contemporânea a partir de autores como Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704) [3] e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) [4]: o primeiro acentuando a ideia de que a providência preside aos destinos dos Impérios, à sua ascensão e queda; o segundo, numa visão que em última análise podemos considerar de a-histórica, entende a história como uma abstração ao serviço de uma demonstração moral. Para Bossuet, “ce long enchaînement des causes particulières, qui font et défont les empires, dépend des ordres secrets de la divine Providence” [5]. Rousseau, na explicação da passagem do estado natural para o estado civil, considera que quando “on observe la constitution naturelle des choses, l'homme semble évidemment destiné à être la plus heureuse des créatures; quand on raisonne d'après l'état actuel, l'espèce humaine praît la plus plaindre. Il y a une grande apparence que la plupart de ses maux sont son ouvrage” [6].
Tentando conciliar esta visão teleológica da história com o racionalismo das Luzes, Immanuel Kant (1724-1804) [7] substitui aquela visão abstrata da história por um entendimento da história empírica como portadora de um sentido, o qual se encontra definido na primeira preposição da L’idée d’une Histoire Universelle d’un point de vue cosmopolitique: “Toutes les dispositions naturelles d'une créature sont destinées à se développer un jour complètement et en raison d'une fin” [8] Segundo Kant, através da razão, o homem assume o desígnio de passar do estado natural ao estado cultural, identificando como problema central deste processo a administração da sociedade civil, regulando os antagonismos e instituindo as liberdades. “En munissant l’homme de la raison, la nature indiquait clairement son plan . . . L’homme ne devait pas être gouverné par l’instinct ni secondé par une connaissance innée; il devait tout tirer de lui-même” [9]. No pensamento kantiano sobre o sentido da história, o homem deve ser entendido como um todo (a espécie) e não enquanto indivíduo, o que se traduz num plano para a formação de uma constituição política perfeita: “après maintes révolutions s'établisse enfin ce que la nature a comme intention suprême, un État cosmopolitique universel au sein duquel toutes les dispositions originaires de l'espèce humaine seront développées” [10].
Mantendo viva a perspetiva religiosa herdeira de Bossuet, mas aprofundando o pensamento kantiano, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) [11] reafirma a confiança na ciência e a fé na razão, para construir um sistema, tão grandioso como complexo, que permita pensar o universo. Representante do idealismo puro, Hegel concebe a existência de uma identidade entre o sujeito e o objeto – o Espírito – que situa no centro da filosofia da história: sendo que o espírito se conhece em si mesmo, definindo a sua própria natureza, a história universal é a representação do espírito no seu esforço de se conhecer a si próprio. “L’histoire du monde est le mouvement par lequel la substance spirituelle entre en possession de sa réalité” [12]. Deste modo, a história do espírito confunde-se com a história do mundo.
Hegel acaba assim por valorizar uma outra noção fundamental para o pensamento histórico: a temporalidade. Ao reconhecer a história enquanto movimento que permite ao espírito construir o conhecimento que tem de si próprio, este filósofo estende o seu pensamento filosófico à evolução do mundo assente num espírito que se manifesta no tempo através do movimento dialético que define em torno dos conceitos de tese (ser), antítese (não-ser) e síntese (devir). É neste movimento dialético, em que o espírito vive constantes mutações, assumindo novas e superiores formas, que reside o essencial de todas as mudanças. Hegel tentava assim mostrar “uma ordem objectiva no desenvolvimento da consciência humana na sucessão de civilizações que são a sua corporização concreta” [13]. Em última análise, Hegel pretende ver na história dos homens e das civilizações a presença de uma razão universal [14]: a liberdade humana concretizada com o nascimento do estado moderno. Relendo Hegel,
Na história do Mundo apenas podem atrair a nossa atenção os povos que constituem um estado. Porque é preciso compreender que este representa a realização da Liberdade, isto é, do objectivo último e absoluto, e que existe apenas para a assegurar. Além disso deve-se compreender que tudo o que o ser humano tem de valioso, toda a realidade espiritual, ele o possui apenas por intermédio do Estado [15].
Entre Kant e Hegel, a filosofia da história afirma algumas noções que reputamos de fundamentais para a construção da história contemporânea, a partir do Iluminismo. Na busca de um sentido para a história, estes filósofos encontram desígnios próximos que desembocam, para Kant, na administração da sociedade civil com a responsabilidade de garantir as liberdades e regular os conflitos, para Hegel, na construção do Estado Moderno. As marcas do presente são visíveis no pensamento destes dois filósofos que viviam uma época de profundas mudanças políticas, económicas e sociais, procurando na história o sentido para as preocupações que ressaltam de uma época de revoluções.
Tendo atrás de si a ideia de progresso, para Kant, a história é “a educadora da humanidade, que se obriga a melhorar incessantemente visando a liberdade partilhada” [16]; (Clément, Demonque, Hansen-Love & Kahn, 1999, p. 217); para Hegel, esse progresso realiza-se por etapas, seguindo uma lógica de negação que se concretiza no movimento dialético entre o ser e o não-ser, isto é, entre a tese e a antítese, cuja superação resulta numa nova figura do Espírito, superior à anterior (síntese) [17]. A expressão da dialética de Hegel vai ser marcante no modo como evoluiu a historiografia contemporânea, para além de se constituir como a base em que assenta o pensamento marxista e a conceção materialista da história.
Mas, para além destas marcas que Kant e Hegel deixaram na filosofia da história, importa ainda sublinhar o desenvolvimento da noção de sistema que nos coloca perante uma outra dimensão estruturante no pensamento histórico: a totalidade.
A ideia de sistema é fundamental para se compreender o essencial do pensamento kantiano. Rotulando a sua filosofia de “transcendental”, Immanuel Kant pretende interrogar os limites da razão, isto é, a possibilidade do conhecimento (razão teórica) e da ação (razão prática). Para tal, o filósofo coloca o sujeito no centro do conhecimento, operando uma profunda revolução coperniciana: o conhecimento dos objetos depende das estruturas apriori da sensibilidade e do entendimento: através das primeiras, os objetos chegam ao sujeito pelas intuições sensíveis; através das segundas, os objetos são pensados e relacionados entre si, fazendo parte de uma natureza submetida a uma ordem e a leis [18]. Deste modo se foi erguendo um sistema coerente no seu todo e no fim a que se propõe chegar. “A crítica da razão acaba, necessariamente, por conduzir à ciência, ao passo que o uso dogmático da razão, sem crítica, leva, pelo contrário, a afirmações sem fundamento” [19]. No caso de Hegel, este filósofo sublinha que, na ciência do absoluto, a verdade reside na sua totalidade. Mas, mobilizando a conceção dialética, a noção de sistema não é entendida como um círculo fechado em si mesmo, mas essencialmente, como um contínuo devir [20].
A filosofia da história surge, assim, para dar inteligibilidade ao sentido da história, oferecendo-lhe uma coerência global que, em Kant, através da perspetiva do Estado cosmopolita, se assume como o fio condutor a priori que tem a capacidade de dar uma ordem aos materiais que nos chegam pela observação, de forma desordenada. No seu texto, já citado anteriormente, L’idée d’une Histoire Universelle d’un point de vue cosmopolitique, Kant define a nona preposição nos seguintes termos:
Une tentative philosophique d'étudier l'histoire universelle d'après un plan de la nature visant l'union civile parfaite dans l'espèce humaine doit être considérée comme possible et même comme susceptible de favoriser cette intention de la nature . . . et bien que nous ayons la vue trop courte pour percer à jour le mécanisme secret de son organisation, cette idée pourrait cependant nous servir à présenter comme un système, du moins en gros, ce qui, sinon, ne serait qu'un agrégat d'actions humaines sans plan [21].
Seguindo a mesma linha de pensamento, Hegel apelidou de “teodicidade da história”, a história como espetáculo majestoso do melhor mundo possível em processo de realização [22].
Esta noção de totalidade veio a constituir-se como a raiz fundamental do pensamento sociológico. Assim, nos campos da sociologia e da antropologia, desenvolveu-se uma visão totalizante da realidade social que começou a construir-se, ainda no século XIX e inícios do século seguinte, com Comte e Marcel Mauss (1872-1950), assumindo uma expressão significativa com a definição do conceito de facto social total. No campo historiográfico, por outro lado, desenvolveu-se a noção de história total, quer em França, na terceira geração dos Annales, protagonizada por Jacques Le Goff (1924-2014) e Pierre Nora (1931- ), quer na Grã-Bretanha nomeadamente através da revista Past and Present, que contou com o envolvimento de Eric Hobsbawm (1917-2012).
Assim, o nome que importa agora registar neste capítulo é o de Auguste Comte (1798-1857) [23]. Considerado como o fundador da sociologia ao retomar a ideia do seu mestre, Saint-Simon, que havia defendido a possibilidade de uma ciência do homem, Comte retoma esta ideia com a proposta de criação de uma ciência social que aproxima das ciências da natureza, ao apresentá-la como uma “física social” e, mais tarde, adotando o nome de sociologia. Esta projeção de uma ciência social nas ciências da natureza revela o outro lado do pensamento teórico de Comte, enquanto nome de particular relevo no que diz respeito ao pensamento positivista que se vai desenvolver durante o século XIX. A sociologia é definida como o “estudo positivo” das leis que regulam os fenómenos sociais: leis estáticas, as que se propõem estudar a existência da sociedade; leis dinâmicas, as que ambicionam o estudo do movimento da sociedade [24]. Assim, no âmbito dos seus estudos sobre o desenvolvimento total da inteligência humana, Auguste Comte define a “lei dos três estados”, a qual consiste em “chacune de nos conceptions principales, chaque branche de nos connaissances, passe successivement par trois théoriques différents: l’état théologique, ou fictif; l’état métaphysique, ou abstrait; l’état scientifique, ou positif” [25]. No estado teológico, o espírito humano representa os fenómenos como produtos da ação sobrenatural. No estado metafísico, a ação de forças sobrenaturais transfere-se para categorias abstratas, capazes de explicar todos os fenómenos observados. No estado positivo, o espírito humano centra-se em descobrir, através do uso combinado do raciocínio e da observação, as leis efetivas, as relações invariáveis de sucessão e similitude. Se, por um lado, a “lei dos três estados” pode ser considerada como uma teoria do conhecimento, por outro, ela pode ser também entendida como uma filosofia da história, na medida em que Comte imagina a evolução do espírito humano por etapas, aproximando-se da dialética de Hegel.
Com Spengler e Toynbee afigura-se, em alguns aspetos, o surgimento de algumas ruturas no que diz respeito à evolução do pensamento sobre a filosofia da história. Oswald Spengler (1880-1936) [26], recorrendo a um método comparativo, centra as atenções do seu trabalho nas diferentes civilizações que surgiram no planeta em todos os domínios da atividade humana. Nesta abordagem à história das civilizações, Spengler opta por isolá-las umas das outras, atribuindo-lhes uma unidade e considerando o seu funcionamento como estruturas fechadas. De algum modo, Spengler anunciou o nascimento da corrente estruturalista, postulando que uma ciência não pode ser universal, pois “chaque civilisations formant une entité homogène, fermé sur êlle-même, irréductible aux autres, l’histoire universelle se trouve placée sous le signe de la discontinuité” [27]. No entender de Spengler, esta visão conduz a uma interpretação global da história, ao centrar a sua atenção nos processos de nascimento, ascensão e queda das civilizações.
De algum modo, Arnold Joseph Toynbee (1889-1975) [28] elabora uma imensa síntese a respeito do nascimento, crescimento e decadência das civilizações, tendo como ponto de partida a ideia de que “as histórias de todas as sociedades das espécies chamadas civilizações eram, em certo sentido, paralelas e contemporâneas” [29]. (Toynbee citado por Garnier, 1995, p. 252). Reconhecendo que estava a retomar o trabalho de Spengler, Toynbee considerava que este autor, no que respeita à temática das origens das civilizações, havia deixado muitas questões por responder. Colocando-se numa posição crítica em relação aos historiadores positivistas franceses, Toynbee contesta a divisão do trabalho da historiografia francófona, dividida entre os que se dedicam à recolha laboriosa das fontes primárias; à redação de trabalhos monográficos sobre uma personagem, um grupo social, uma região ou um setor de atividade em limites cronológicos bem precisos; à construção de grandes sínteses construídas pelos “mestres”. Esta estrutura hierarquizada introduz vícios de investigação, deixando-se influenciar pelo domínio das fontes mais significativas e obrigando muito historiadores a um trabalho parcelar. Tal como Spengler, também Toynbee é um percursor da corrente estruturalista. Este último autor, com A Study of History, dando continuidade ao estudo das civilizações através do método comparativo, oferece uma perspetiva da evolução das sociedades humanas que deixa de ser contínua e linear. Mas se Toynbee é um percursor do estruturalismo, o qual teve como referência o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), ele aproxima-se também do pensamento marxista ao dar ênfase a que os elementos que compõem a sociedade não são os seres humanos mas as relações que existem entre eles [30].
Deste modo, a partir de meados do século XIX regista-se um processo de laicização do sentido da história que vinha sendo anunciada desde os finais do século XVIII. Com Auguste Comte, o positivismo assume um papel fundamental na afirmação das Ciências Sociais e, em particular na história com a criação da escola metodista (positivista) em França. Com Spengler e Toynbee, um na Alemanha e outro na Grã-Bretanha, anuncia-se uma nova corrente de pensamento com uma visão fragmentada da realidade histórica, assumindo a sua diversidade. Novos conceitos vão sendo mobilizados para o campo da história, enquanto saber que se dedica ao estudo das mudanças que ocorrem nas sociedades humanas. Entre eles, destaca-se a noção de civilização, entendida na sua unidade espácio-temporal, detentora de estruturas coerentes entre si, mas analisadas e interpretadas de forma isolada das restantes. Para além deste conceito, importa assinalar ainda a recuperação que Toynbee faz do pensamento marxista ao colocar o acento tónico nas relações humanas enquanto elemento estruturante das sociedades. Deste modo, a noção de Homem, como objeto de estudo não desaparece, mas ganha uma nova dimensão ao ser compreendido e explicado no contexto do dinamismo da realidade social em que vive.
* * *
O estudo das principais referências relativas ao pensamento filosófico sobre a história, na Europa dos séculos XVIII e XIX (Figura 1) [31], permite-nos compreender o modo como se foram construindo (e como foram evoluindo) alguns dos principais conceitos que se afirmaram como estruturantes do pensamento historiográfico contemporâneo.
Na busca iniciada pelo Iluminismo de um sentido para a história, as sociedades humanas passaram a ser analisadas e explicadas numa lógica de progresso contínuo, assegurado pelo uso da razão, proporcionando ao Homem sociedades melhor organizadas, representadas pelo Estado Moderno.
Esta perspetiva histórica do progresso das sociedades humanas mediado pela razão: (1) reconhece no Homem a capacidade de agir sobre o mundo natural e social onde se insere; (2) mobiliza a ideia de sistema, enquanto conceito operatório capaz de explicar o modo como os diferentes elementos da sociedade interagem entre si; e (3) adota uma noção de temporalidade associada aos processos de evolução das sociedades humanas.
O pensamento hegeliano e a influência que exerceu na filosofia europeia do século XIX constituiu-se como um referente que determinou, em grande medida, o tempo e o modo como evoluiu a historiografia oitocentista. Através da dialética hegeliana aprofundaram-se as ideias de sistema e de totalidade que ofereceram ao saber histórico e às ciências sociais no geral o reconhecimento de uma realidade social única que as diferentes disciplinas ajudam a compreender, ainda que de uma forma parcelar. Foi também pela dialética hegeliana que se consolidou a ideia da história humana como um permanente devir (temporalidade), em constante mudança e passível de ser analisada nas suas diferentes etapas. De algum modo, podemos afirmar que ficaram criadas as condições para se avançar no pensamento historiográfico no sentido de lhe conferir uma cientificidade, para o que Auguste Comte muito contribuiu ao tentar encontrar as leis que regulam os fenómenos sociais.
Spengler e Toynbee completam a noção de sistema ao mobilizar a ideia de civilização como unidade analítica, considerando o seu funcionamento enquanto estrutura fechada, isto é, enquanto realidades históricas a analisar na sua totalidade, mas entendendo as relações sociais como elementos estruturantes das sociedades humanas.
Referências bibliográficas
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Kant, I. (1784/2002). L’idée d’une histoire universelle d’un point de vue cosmopolitique. Consultado a 3 de dezembro de 2015, em http://classiques.uqac.ca/classiques/kant_emmanuel/idee_histoire_univ/idee_histoire.html
Pradeau, J-F. (dir.). (2010). História da filosofia. Lisboa: D. Quixote.
Notas
[1] Delacroix, Dosse, Garcia & Offenstadt, Vol. I, 2010.
[2] Bourdé & Martin, 1997.
[3] Obra de referência: Discours sur l'Histoire universelle (1681).
[4] Obra de referência: Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes (1755).
[5] Bossuet, 1681/1966, p. 427.
[6] Bourdé & Martin, 1997, p. 103.
[7] Obras de referência: Critique de la raison pure (1781) e L’idée d’une histoire universelle d’un point de vue cosmopolitique (1784).
[8] Kant, 1784/2002, p. 6.
[9] Bourdé & Martin, 1997, pp. 105.
[10] Kant, 1784/2002, p. 16.
[11] Obras de referência: La phénoménologie de l’esprit (1807) e Leçons sur la philosophie de l’histoire (1838-1845).
[12] Bourdé & Martin, 1997, pp. 109.
[13] Berlin, 1939/2014, p. 133.
[14] Clément, Demonque, Hansen-Love & Kahn, 1999.
[15] Citado por Gardiner, 1995, p. 82.
[16]
[17] Hegel identifica no pensamento de Kant o esquema tríplice da tese, antítese e síntese (Pradeau, 2010).
[18] Clément, Demonque, Hansen-Love & Kahn, 1999.
[19] Kant, 1781/1994, p. 519.
[20] Pradeau, 2010.
[21] Kant, 1784/2002, p. 16.
[22] Delacroix, Dosse, Garcia, & Offenstadt, Vol. I, 2010.
[23] Obra de referência: Le cours de philosophie positive (1830-1852).
[24] Bourdé & Martin, 1997.
[25] Bourdé & Martin, 1997, pp. 113-114.
[26] Obra de referência: Le déclin de l’Occident (1918).
[27] Bourdé & Martin, 1997, pp. 118-119.
[28] Obra de referência: A study of history (1934-1961).
[29] Toynbee citado por Garnier, 1995, p. 252.
[30] Bourdé & Martin, 1997.
[31] Figura 1. Filosofia da história (séculos XVIII a XX).
Sobre o ofício do historiador
Certeau [1], no livro Faire de l´Histoire, tem a responsabilidade de escrever o primeiro capítulo, ensaiando uma aproximação ao conceito de “operação histórica”, o qual se encontra na base de qualquer reflexão sobre o processo de construção do conhecimento histórico. Em poucas palavras, estava em causa responder às três simples questões, mas de complexas respostas, que enuncia nas duas primeiras linhas do seu texto: “Que fabrica o historiador quando «faz a história»? Em que trabalha? Que produz?”. Mais interessante é ainda a sua forma de refletir sobre o ofício de historiador, retomando a ideia da influência do presente no estudo do passado e recuperando a relação que mantém “com a sociedade presente e com a morte” [2], levando-nos a recordar Jules Michelet e o papel que atribuía ao historiador, colocando-o na interseção entre a vida e a morte [3].
A operação histórica, na perspetiva de Certeau, aprofunda a crítica à história pretensamente “objetiva e verdadeira”, centrada na apresentação dos factos. É no contexto desta perspetiva crítica ao passado da historiografia da escola metódica, que afirma a ideia de que os “dias deste positivismo estão terminados” [4]. Os factos dificilmente são hoje reconhecidos por “objetivos”, tendo em conta a problemática e as escolhas que são uma construção do historiador: “Quando se trata do mundo actual, que se nos oferece como uma série de possíveis, distinguir os grandes problemas é essencialmente imaginar a última palavra, discernir, entre todos esses possíveis, os que triunfarão amanhã. É isso que é difícil, aleatório, mas sem dúvida necessário” [5].
Assim, é preciso esperar pelo final do seu texto para chegarmos a uma definição de operação histórica, a qual “consiste em recortar o dado segundo uma lei presente, que se distingue do seu “outro” (passado), em se distanciar em relação a uma situação adquirida e em marcar assim, por um discurso, a mudança efectiva que essa distanciação permitiu”. Destaca-se, deste modo, o lugar do historiador, entre a situação do presente e o passado vivido, partindo em busca das mudanças registadas no tempo. Mas Certeau vai ainda mais longe, introduzindo na sua equação temporal da construção do discurso histórico o próprio futuro: “Também a história é sempre ambivalente: o lugar que atribui ao passado é, igualmente, uma maneira de dar lugar a um futuro” [6].
Assim, ao contrário do que previa o empirismo positivista do século XIX, o ofício do historiador não pode ser considerado como uma mera descrição dos factos do passado: a sua tarefa consiste na reconstrução de um passado histórico na forma de relato narrativo a partir das fontes primárias, mediante um método inferencial e interpretativo do qual é impossível eliminar o próprio sujeito gnosiológico. Daqui resulta a impossibilidade de o investigador prescindir, na sua interpretação, do seu sistema de valores filosóficos e ideológicos, da sua experiência política e social, do seu grau de formação cultural [7].
Se, por um lado, a dimensão temporal é estruturante na definição do objeto de estudo e da problemática selecionados pelo historiador no início do seu trabalho, por outro lado, o essencial do seu ofício concentra-se no exercício da construção de um discurso. Assim, a operação histórica, tal como a definimos anteriormente, pedindo emprestado o conceito a Michel de Certeau, ocupa o núcleo central da epistemologia do conhecimento histórico e integra três fases simultaneamente distintas, mas profundamente interrelacionadas, a saber: fase da recolha e tratamento da informação a partir das fontes (documentos); fase da compreensão; e fase da comunicação.
No entanto, se a construção de um discurso historiográfico está no centro da prática do historiador, então ganha também relevo compreender em que medida esta prática é condicionada pelo lugar e o tempo em que vive.
A influência da Revolução Francesa de 1789 na evolução do pensamento historiográfico europeu, já abordada no capítulo anterior, é um exemplo do que vimos afirmando. Um outro exemplo pode ser avançado se considerarmos o modo como as motivações políticas impulsionaram para a história a geração que a ela chegou após a queda do Império. Augustin Thierry confessa-as nestas breves linhas "En 1817, préoccupé d'un vif désir de contribuer constitutionnelles, je me mis à chercher dans les livres d'histoire des preuves et des arguments à l'appui de mes croyances politiques” [8]. Saindo das fronteiras francesas é também possível identificar como a globalização dos nossos dias tem levado ao desenvolvimento, no mundo anglo-saxónico, da Global ou World history, oferecendo-nos mais uma evidência de como “a prática historiadora nunca se separa do contexto em que exercem o seu ofício . . . É evidente que esta proposta está relacionada com a globalização que ocorre no mundo contemporâneo e também os historiadores são interpelados pelos fenómenos que a acompanham” [9].
Em poucas palavras, podemos considerar que cada momento histórico define uma configuração específica que imprime a sua marca na maneira de ler e de escrever a história [10]. (Delacroix, Dosse & Garcia, 2007). E, retomando Braudel, esta questão em torno da relação entre o historiador e o seu tempo e lugar é colocada, como não poderia deixar de ser, na perspetiva da longa duração.
Em todas as épocas, há uma certa representação do mundo e das coisas, uma mentalidade colectiva dominante, que anima, penetra toda a massa da sociedade. Esta mentalidade que dita as atitudes, orienta as opções, enraíza os preconceitos, dirige os movimentos de uma sociedade é eminentemente um factor de civilização. Muito mais do que os acidentes ou as circunstâncias históricas e sociais de uma época, é fruto de heranças longínquas, de crenças, de medos, de inquietações antigas muitas vezes quase inconscientes, o verdadeiro fruto de uma imensa contaminação cujos germes se perderam no passado e são transmitidos através de gerações e gerações. As reacções de uma sociedade aos acontecimentos do momento, às pressões que sobre ela exercem, às decisões que dela exigem obedecem menos à lógica, e até ao interesse egoísta do que a este comando não formulado, não formulável muitas vezes, e que brota do inconsciente colectivo [11].
Os limites que a sociedade estende em torno do trabalho não excluem a própria universidade, isto é, o contexto institucional onde, por excelência, se exerce aquele ofício. Que o diga Jacques Le Goff que, nos anos de 1950, quando inicia as suas investigações, deparou-se com dificuldades em ver o seu trabalho reconhecido pelos seus pares, ao adotar “uma concepção global e totalizante da história. Esta concepção, que podemos relacionar ao mesmo tempo com o programa dos Annales, com a obra de Fernand Braudel e com o marxismo, não contava com o reconhecimento da universidade francesa, longe disso" [12].
A componente institucional do conhecimento histórico, tal como ocorre nos restantes domínios científicos, é fundamental, não só para a afirmação de uma determinada ciência no sistema global das ciências, como também para a confirmação do cientista junto dos seus pares. “A instituição não atribui apenas um lugar social a uma «doutrina». Ela torna-a possível e determina-a sub-repticiamente” [13]. Neste sentido, o historiador quando produz o seu trabalho, escreve e apresenta o seu “discurso” não tem como principal destinatário o público em geral, mas, muito especificamente, os colegas de ofício “que a notam segundo critérios científicos diferentes dos do público e decisivos para o autor, desde que este pretenda fazer obra historiográfica” [14].
Se estes são os termos em que se jogam as influências da sociedade no ofício historiográfico, por outro lado, importa também equacionar o modo como se estabelece a relação em sentido inverso, isto é, definir o papel social do historiador.
Neste âmbito, relembremos como a história pessoal de François Guizot se confunde com a história política de França ou o empenhamento de Augustin Thierry já aqui anteriormente referido [15]. Estes são dois exemplos que nos aproximam de uma conceção de história comprometida com o presente, cujas interrogações nos conduzem à investigação sobre o passado. Uma história dirigida ao futuro e à esperança:
E fazer história é ensinar os outros, na terra inteira e contra as tentações destruidoras, a fazer história e a descobrir um espaço e um tempo futuro de esperança. É ajudar as civilizações a encontrarem-se, a aceitarem-se e a compreenderem-se. A história, saída do tormento positivista, é a vida, é condição da vida na instabilidade dos tempos novos. É o marcador «da» civilização que transcende as civilizações" [16].
Por outras palavras, esta é a conceção de uma história, em primeira mão, relacionada com a vida, da qual resulta a sua dimensão formadora de cidadãos ativos e comprometidos com a transformação social. Para Lucien Febvre, a “história não é apenas passado, apenas morte, apenas documentos para serem lidos; a história é a vida, ou melhor, é vida porque permite ao historiador descobrir-se nela como portador, segundo a expressão de Marleen Wessel, de uma «responsabilidade social» que é também uma responsabilidade cívica [17].
Referências bibliográficas
Boureau, A. (2005). Jacques Le Goff. In Véronique Sales, Os historiadores (pp. 309-328). Lisboa: Teorema.
Braudel, F. (1989). Gramática das civilizações. Lisboa: Teorema.
Certeau, M. (1987). A operação histórica. In J. Le Goff, & P. Nora (dir.), Fazer História 1 (pp. 17-58). Venda Nova: Bertrand Editora.
Crouzet, D. (2005). Lucien Febvre. In Véronique Sales (coord.), Os historiadores (pp. 73- 105). Lisboa: Teorema.
Delacroix, C., Dosse, F. & Garcia, P. (2007). Les courants historiques en France. Paris: Gallimard.
Moradiellos, E. (2013). El oficio de historiador. Estudiar, enseñar, investigar. Madrid: Akal.
Poloni-Simard, J. (2005). Fernand Braudel. In Véronique Sales, Os historiadores (pp. 173-200). Lisboa: Teorema.
Notas
[1] Certeau, 1987.
[2] Certeau, 1987, p. 17.
[3] Delacroix, Dosse & Garcia, 2007.
[4] Certeau, 1987, p. 19.
[5] Braudel, 1989, p. 11.
[6] Certeau, 1987, p. 19.
[7] Moradiellos, 2013)
[8] Delacroix, Dosse & Garcia, 2007, p. 27.
[9] Poloni-Simard, 2005, p. 192.
[10] Delacroix, Dosse & Garcia, 2007, p. 27.
[11] Braudel, 1989, p. 35.
[12] Boureau, 2005, p. 301.
[13] Certeau, 1987, p. 22.
[14] Certeau, 1987, p. 25.
[15] Delacroix, Dosse & Garcia, 2007.
[16] Crouzet, 2005, p. 96.
[17] Crouzet, 2005, p. 90.